Quando chegou o penálti decisivo, pelo menos para a Argentina, que precisava de marcar e esperar que Portugal falhasse a seguir, Ângelo Girão tinha pela frente Matias Platero, que é seu colega no Sporting. Mas todo o tempo que passaram a treinar ao longo das duas últimas temporadas em nada beneficiou o sul-americano, que viu o guarda-redes defender, tornando Portugal campeão mundial de hóquei em patins pela primeira vez desde 2003, quando Girão e os seus colegas de equipa ainda eram crianças ou adolescentes.
Na final disputada no rinque do Palau Blaugrana, em Barcelona, confirmou-se a sensação dos adeptos ao longo da caminhada em que Portugal afastou Itália e Espanha para disputar o título com a Argentina: podia não ter a melhor equipa, mas a presença de Girão na baliza bastava para impor um temor nos adversários que não se explica só pela “armadura” que o protege do impacto de bolas que saem dos sticks a dezenas de quilómetros por hora.
Olhando apenas para os três jogos decisivos, nos quais Portugal consentiu apenas sete golos, cinco dos quais nos eletrizantes quartos de final contra a Itália, decididos noutro desempate por grandes penalidades, Girão revelou-se praticamente intransponível no um-contra-um. Só nos quartos de final defendeu três livres diretos no tempo regulamentar e prolongamento, mais dois penáltis no desempate (outros dois saíram ao lado e por cima da baliza). E se nas meias-finais frente à anfitriã Espanha (até porque grande parte dos convocados são catalães, incluindo o também sportinguista Ferran Font) não precisou de demonstrar a sua mestria no desempate, certo é que atrapalhou Adroher num livre direto, defendeu um penálti de Casanovas e, já no prolongamento (o resultado estava em 2-2 no fim do tempo regulamentar), manteve a vantagem nacional com nova defesa ao livre direto de Bargalló.
Se tudo isso foi impressionante, a final disputada no domingo passado teve o seu quê de recital. Nenhuma das seleções marcou no tempo regulamentar e no prolongamento, o que se explica em grande parte com quatro defesas de Girão em lances de bola parada a favor dos argentinos. Na última até houve direito a encore, pois depois de defender o penálti de Nicolía, seu “velho conhecido” dos dérbis contra o Benfica, deixou cair o stick e viu assinalado um novo penálti, prontamente defendido. Chegada a hora do desempate, ainda permitiu que o mesmo Nicolía se desforrasse, mas defendeu três penáltis e viu Álvarez atirar a bola por cima da baliza.
Enquanto festejava o feito nos braços dos colegas não parava de aumentar a popularidade de quem já era uma lenda para os adeptos de hóquei em patins e de repente viu a notoriedade disparar. Convidado por Cristina Ferreira para o programa das manhãs da TVI tem agora 37 mil seguidores no Instagram e 21 mil no Facebook.
“Podem começar a fazer uma estátua ao Girão”, disse o capitão de equipa João Rodrigues ainda no Palau Blaugrana, interrompendo a entrevista à RTP em que Girão, agora já sem o capacete que lhe esconde a cara durante os jogos, primou pela modéstia: “Somos uma verdadeira equipa. Apesar de jogarmos uns contra os outros durante o ano, somos amigos e isso nota-se cá dentro. Fizemos do cansaço força. Eles correram imenso, meteram-se à frente de todas as bolas e as que sobraram tentei parar. Fomos melhores, merecíamos ter ganho em jogo corrido mas conseguimos ganhar e foi o mais importante”.
Dois dias depois, quando os campeões mundiais foram ao Palácio de Belém, voltando muitos deles a ser agraciados – Girão já é comendador da Ordem do Mérito desde 2016, devido à conquista do título europeu em Oliveira de Azeméis -, o guarda-redes foi destacado no discurso de Marcelo Rebelo de Sousa. “Em nome de todos os portugueses, abraço-vos a todos, em especial ao Ângelo Girão pela serenidade coriácea na defesa dos lances impossíveis. Porque aí o que conta é a consistência. Defender uma vez, duas vezes, cinco vezes, dez vezes, é obra. Defender sempre é praticamente impossível. E no entanto, se todos tivermos essa serenidade, todos os dias, Portugal será uma pátria muito melhor, para bem de todos os portugueses”, disse o Chefe de Estado.
O guarda-redes nascido há 29 anos na Invicta, e que representou o FC Porto ao longo de uma década, sem chegar à equipa principal, vê o hóquei em patins como o seu destino: “Tenho a felicidade de ter o meu trabalho de sonho.” O mesmo sonho que lhe permitiu ser campeão nacional pelo improvável Valongo em 2014, transferindo-se de seguida para o Sporting, então recém-regressado à modalidade, pelo qual conquistou a Taça CERS (equivalente à Liga Europa) na primeira temporada, somando-lhe a Supertaça em 2016, o seu segundo título de campeão nacional em 2018 e a conquista da Liga Europeia (equivalente à Champions) em 2019, derrotando os azuis e brancos num jogo em que os adeptos leoninos viram três defesas do guarda-redes em livres diretos e gritaram o seu nome em uníssono nas bancadas do Pavilhão João Rocha. Reconquistar o título nacional, ao lado do também campeão mundial Telmo Pinto, é o seu próximo desafio.
Artigo publicado na edição nº1998, de 19 de julho, do Jornal Económico